terça-feira, 4 de agosto de 2009

As "Lettres Portugaises" e Ivan Junqueira


As "Lettres Portugaises" e Ivan Junqueira


Nos dias 24 e 25 de Maio passado, esteve em Portugal, para o lançamento da sua antologia poética “O tempo além do tempo”, o ex-jornalista, poeta, tradutor, ensaísta, crítico literário e ex-presidente da Academia Brasileira de Letras, Ivan Junqueira (Rio de Janeiro, 1934)[1].
Ivan Junqueira é um dos principais autores brasileiros que segue ou pretende seguir de perto nos seus ensaios as posições anti-alcoforadinas defendidas por A. Gonçalves Rodrigues (1935 e 1944), Leo Spitzer (1953) e Deloffre e Rougeot (1962), entre outros. Quer dizer: não concorda com a autenticidade portuguesa das cartas e muito menos com a presumível autoria de Mariana Alcoforado. O “Fio de Dédalo”[2] é uma das suas melhores obras onde reúne a heterogeneidade do seu pensamento crítico, como poeta, ensaísta, tradutor e algo de historiador. O ensaio “A fraude das Lettres Portugaises” (pp.274-281) foi primeiramente proferido numa conferência no ciclo literário “Rodas de Leitura”, no Centro Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, em 14 de Maio de 1997.
Felizmente não foi Dédalos a construir esse labirinto, não de Creta, mas literário, das “Lettres Portugaises”, no qual se tem procurado com desmesurado afã a qual das pontas – e não estarão todas à vista, nem outras facilmente acessíveis – corresponde o fio autentico. Supomos que o mesmo fio quase se esgotou ou em parte ardeu, após o desenho de tão complexa trama labiríntica, sendo hoje impensável, dada a natureza metafórica de que o revestiram, encontrar nas “Lettres” o fio de Ariadne que reconduziu Teseu à liberdade, que o mesmo é dizer: encontrar e entender, como lição e força libertadora do amor, a paixão sublime de Mariana. Há quem veja na defesa da autenticidade portuguesa das “Lettres Portugaises” a construção de um mito, um mito nacional (Anna Klobucka, 2006) . Mas um mito distorce os acontecimentos. Os adeptos da sua autenticidade portuguesa [das cartas e de Mariana, não do mito] não manipularam as fontes impressas e manuscritas, foram honestos, coerentes nos seus estudos – tudo sempre citado, até ao pormenor, para que não restassem dúvidas. Não foram os alcoforadistas (que os há em Portugal e no estrangeiro) a editar as cartas com o título de “Lettres Portugaises traduites en françois” (cartas portuguesas traduzidas em francês, que os opositores difundem, com frequência, como “escritas em”), nem mencionaram Guilleragues como seu tradutor (o pretenso autor dos anti-alcoforadistas), nem descobriram o nome de família de Mariana, Alcoforado, nem a terra onde vivia, Beja. Tudo lhes foi transmitido em francês e por franceses, em França. Se foi uma brincadeira, foi coisa séria, porque deixaram por todo o lado vestígios da traquinice que fizeram para que parecesse verdade – cremos que no século XVII ninguém tinha capacidade para criar, inventar, tais cartas, que agora querem ver como obra de cariz clássico seguindo até os cinco actos da tragédia grega.
Regressando `”A fraude das Lettres Portugaises” de Ivan Junqueira, esclarecemos que a “Advertência ao Leitor” da edição princeps, de 1669, retrata uma norma seguida pela maioria dos livreiros da época quando publicam assuntos dos quais desejam manter o anonimato dos intervenientes. Com frequência afirmam que não os conhecem e que o texto que lhes chegou às mãos, através de pessoa de confiança, relata factos verídicos. Portanto, acreditando em Claude Barbin, seu primeiro editor, “esse gentil-homem que serviu em Portugal” não é uma falsidade, mas, se fosse, não deveria ser motivo suficiente para, como afirma Junqueira (1998, 274), garantir o estrondoso sucesso editorial. O sucesso reside “apenas” mais na liberdade de expressão, exterior às normas vigentes, do que na qualidade literária das cartas, e no desassombro com que Mariana enfrenta, e explica, a indiferença a que sujeitaram a sua paixão amorosa – salienta-se o plural sujeitaram, porque não foi só Chamilly a contribuir para a sua revolta, foram também, como ela diz, a severidade dos próprios familiares e as leis implacáveis do seu próprio país.
O autor desconhece que “du Marteau”, aliás Pierre du Marteau, “sediado” em Colónia, é uma entidade forjada, da qual vários livreiros se apropriaram para divulgarem temas proibidos, denunciarem situações candentes de imoralidade e injustiça social. É na edição deste livreiro fantasma, criado, julga-se, pelos livreiros Elzevier[3], na Holanda, que, ainda em 1669, vêm a publico os nomes de Chamilly e de Cuilleraque (Guilleragues), respectivamente como destinatário e tradutor das cartas. Também desconhecemos qual a documentação que, já em 1669, refere Mariana Alcoforado como a “religiosa alentejana”autora das cartas (1998,275). Em nenhuma publicação coeva ou, até, setencentista, vem tal qualificação de naturalidade, deve ser um lapso do autor. Por outro lado, aparentemente, transforma a defesa do seu discurso num caso de vida ou de morte. Leia-se: “Mais grave ainda: Saint-Simon e Duclos, em suas Memórias, confirmam essa atribuição [à religiosa portuguesa], que Chamilly não desmentiu. E pior: em 1810, numa crítica ao “Dicionário” de Brunet, Boissonade deu a conhecer […] o nome da religiosa Mariana Alcoforado”. Pois, estes documentos são graves e do pior que pode haver para a negação da autoria francesa das cartas. Associados à carta que Boileau dedicou ao seu amigo Guilleragues, então é mesmo do pior que pode haver, pois não menciona a mais ténue ligação entre o presumível autor e as “Lettres”. Também Madame de Sévignè, amiga de Guilleragues, teria todas as razões para desmentir Barbin [ “ce chien de Barbin”, foi o carinho com que Mdme. o tratou numa das suas cartas], fazendo justiça na autoria das “Portugaises”ao seu amigo. Porém, nada.
Junqueira (1998, 276-277) também refere a “ocorrência de três ou quatro lusismos de linguagem [só? Tão poucos…], que não se podem atribuir, entretanto, à mão tosca de Mariana, mas sim à sensibilidade literária de Guilleragues, que, provavelmente, se valeu dos textos de outras cartas de portuguesas apaixonadas por oficiais franceses que as teriam levado para França como troféus […].”[4] Imagine o nosso leitor: “mão tosca de Mariana”, quando se sabe que só as religiosas com mais conhecimentos é que podiam chegar, como chegou Mariana, aos cargos de escrivã e vigária conventual.
Na ânsia de tentar provar a autenticidade francesa das “Lettres” o autor agrava ainda mais o seu incompleto conhecimento do assunto, transcrevendo mal [e não é lapso] o seu Registo oficial, descoberto por F.C. Green, em 1926. Há iniciais maiúsculas e minúsculas que não são respeitadas na cópia, na transcrição ou no que quer que tenha sido analisado e feito. O documento original, do qual possuímos fac-simile, trata as “Lettres Portugaises” com inicias minúsculas e “Les Valentins, Epigrammes et Madrigaux” com iniciais maiúsculas. Descurar este pormenor é grave; querer seduzir o leitor com uma subtileza desta natureza não é correcto. Porém, Junqueira não foi o único a copiar o documento sem consultar a fonte original, quase todos o fizeram. A origem da polémica está nesse Registo manuscrito, pedido por Claude Barbin, em 17 de Novembro de 1668, o qual atribui, preto no branco, e traduzindo para português, “Os [jogos] Valentinos cartas portuguesas Epigramas e Madrigais” a Guilleragues. Sabe-se, e o autor não menciona, que era costume registar em simultâneo traduções e criações literárias; sabe-se que obras traduzidas eram registadas como de autor; outras nem os mencionavam, embora fossem conhecidos. Enfim, que legitimidade, para a atribuição das cartas a Guilleragues, pode ter um registo desta natureza quando “Marteau”o divulga como tradutor, sem qualquer oposição. O próprio F. C. Green parecia não confiar a cem por cento na atribuição. É muito provável que as “lettres portugaises”, com minúsculas, signifiquem a tradução de Guilleragues, e as outras obras, com maiúsculas, as de sua autoria. Por essa razão, Barbin, edita em primeiro lugar, as “lettres Portugaises traduites en françois” e só depois as obras de Guilleragues de mistura com outra de outra autoria. Esta asserção poderá ser confirmada ou negada pela análise dos outros registos (estudo que realizamos neste momento).
Publicado por Leonel Borrela in Diário do Alentejo de 6 de Julho de 2007

[1] In Diário de Notícias de 23 de Maio de 2007. Secção “Artes”, p.50
[2] JUNQUEIRA, Ivan –“O Fio de Dédalo”. Rio de Janeiro:Editorial Record, 1998. [Esta obra foi-nos amavelmente oferecida pela professora universitária de Porto Alegre, Claudiany Pereira, também uma fervorosa estudiosa das “Lettres Portugaises”. Bem haja.
[3] Ver uma das edições Elzevier [identificam-se quase todas pela ilustração da esfera armilar, com os signos do zodíaco], provavelmente de Amesterdão, porém, da oficina fictícia de Pierre du Marteau, em Colónia, no ano de 1676.
[4] Onde estão estas cartas? Alguém as viu ou mencionou?
Parece que se confunde bastante, isso sim, os resultados execráveis da Guerra Peninsular (1807-1814) com o período de seiscentos. Até há gente de alto gabarito intelectual que vem ao museu de Beja, instalado no cenóbio de Mariana, e desata a falar da fuga da família real para o Brasil, da Guerra Peninsular e, claro, por causa dos franceses, das famosas cartas da freira. Ficam estarrecidos quando se lhes diz que a história é do século XVII e não do XIX.

1 comentário:

Unknown disse...

Como é gratificante aprender com alguém que nos apresenta, tanto conhecimento e cultura.

Lettres d`amour d`une religieuse portugaises ecrites au chevalier de C.oficier français en Portugal

Lettres d`amour d`une religieuse portugaises ecrites au chevalier de C.oficier français en Portugal
Pormenor da gravura de J Padebrugge 1696

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Calandrónio é um nome que vem epigrafado numa lápide funerária visigótica exposta no Núcleo Visigótico do Museu Regional de Beja. Num texto comovente Calandrónio chora a perda da sua sobrinha Maura, de olhos muito belos e formosa de feições, que mal fizera quinze anos. Por ser um documento pacense extraordinário,do século VII, repleto de sensibilidade, adoptei-lhe a memória. Leonel Borrela