terça-feira, 4 de agosto de 2009

LETTRES PORTUGAISES MARIANA ALCOFORADO I


Das Lettres portugaises e Mariana Alcoforado[1]

Cremos que é imprescindível a leitura atenta de muitos livros para que possamos conhecer, apenas e razoavelmente bem, um único. A este porfiámo-lo durante anos a fio até que nos viesse parar à mão. É raro, mas não é único, nem haveria necessidade de sê-lo, apesar de ter sido responsável, a partir do século XVII, pelo desencadear de uma invulgar avalanche de edições: referimo-nos à edição princeps das Lettres Portugaises traduites en françois, de 184 pp., in 12º, impressa em Paris, por Claude Barbin, no ano de 1669. Este livrinho integra a colecção bibliográfica particular[2] que inventariámos para a realização de um estudo académico sobre a História do Livro e da Leitura através das “Lettres portugaises”.
A colecção, porém, não é totalmente bibliográfica, nem totalmente alcoforadina, pois compreende um complemento diversificado, que muito a enriquece, noutras áreas artísticas e iconográficas: fotografia, desenho e gravura, pintura e escultura, medalhística e esfragística, cerâmica, postal, cartaz e publicidade, cinema, áudio e documentário. Todavia, para este estudo, inventariámos cerca de 440 exemplares bibliográficos[3], entre periódicos e não periódicos, e procedemos ao tratamento estatístico das variáveis mais importantes que nos permitem analisar com maior rigor a colecção nos seus aspectos quantitativo e qualitativo.
Embora o tema da pequena biblioteca seja cativante e mereça que dele se faça uma breve contextualização histórica, serve também de veículo para conhecer uma parte da evolução e dos atributos da imprensa entre as sociedades do Antigo Regime e a Contemporânea. Logo, esse livrinho único, a edição princeps das Lettres Portugaises[4], integrado no seu conjunto seiscentista, que lhe haveria de acarrear maior fama, configura algumas mudanças interessantes na arte da impressão, da composição e na exploração comercial do seu conteúdo.
De todas as edições das Cartas Portuguesas, diacronicamente, poderíamos inferir do seu sucesso económico, dada a quantidade de reedições e versões em prosa, verso, drama e arte, aliada às críticas literária e social, com incursão activa na cultura e na política. Assim, as presumíveis Cartas de Amor da freira portuguesa foram também portadoras da mensagem irreverente de libertação das Três Marias[5], relativamente ao papel da mulher portuguesa, e não só, no regime de Salazar e Caetano. Antes delas, já o general Humberto Delgado[6], em 1964, tinha publicado no seu exílio brasileiro um importante ensaio, constantemente ignorado pelos estudiosos, sobre Mariana Alcoforado e a condição sofrível em que vivia a mulher em Portugal.
Apreciamos, evidentemente, a edição princeps das Cartas Portuguesas como raridade bibliográfica que tanto apraz aos bibliófilos, mas vemo-la, fundamentalmente, como fonte histórica, testemunho que as cartas originais, desaparecidas, não podem dar; admiramos na gravura concebida por Eisen e aberta a buril por Massard (1770) a tentativa de substituir a beleza das palavras; apercebemo-nos da permanente evolução dos elementos que estruturam o livro e, também, do apego deste à tradição, pela frequente utilização de capitulares, as grandes letras, quase sempre ornamentadas e encaixilhadas que no início do prefácio e do capítulo certificam bem o gosto e o hábito do passado manuscrito e iluminado dos códices.
Abrimo-nos ao espaço visível do livro, de memórias sem tempo – normalmente, os livros, têm vida, são um local de debate, galeria de arte e museu, uma boca de cena onde pulula o teatro da vida, onde pulsam os bastidores; são um diário devassado, recôndito, alvo de curiosíssimos olhares nada discretos; são um valioso testemunho da história; são, afinal, as polémicas Lettres Portugaises traduites en françois (sic), editadas pelo livreiro parisiense Claude Barbin (c.1628-1698), no dia 4 de Janeiro de 1669, um bom pretexto para falarmos da autenticidade do Livro no tempo, no espaço e na memória.
Não vamos afirmar que leitura e vida corriam paralelas, como no caso setecentista do comerciante Jean Ranson que estruturou a sua, após tomar como modelo a seguir as leituras de Rousseau[7], mas acreditamos que as Cartas Portuguesas, pelo elevado numero de edições, provam o quanto eram e são procuradas pelos leitores, provavelmente como uma necessidade vital de contrariar uma existência que ninguém deseja para si: a clausura e o desamor.
Publicado por Leonel Borrela In Diário do Alentejo de 31 de Agosto de 2007

[1] Este é o título do livrinho que temos em mãos para publicar, sob a chancela da editora 100Luz, no final deste mês de Setembro [saiu a publico em 29 de Setembro de 2007]. Grande parte deste texto introdutório resulta do trabalho académico de Seminário para a conclusão, em 2005, da licenciatura em História ramo do Património Cultural, da Universidade de Évora, sob a orientação do Professor Doutor Francisco António Lourenço Vaz.
[2] Trata-se da nossa colecção bibliográfica sobre as Lettres Portugaises e Mariana Alcoforado, religiosa que nasceu, viveu e morreu em Beja, considerada a sua presumível autora. Denominámo-la (à colecção) de Colecção Bibliográfica Alcoforadina ou, somente, Colecção Alcoforadina, mas o nome de Biblioteca Alcoforadina também teria razão de ser, dada a especialização do tema, embora pareça mais pretensioso.

[3] Desde o dia 5 de Abril de 2005 para cá já foram inventariados mais 45 exemplares… [já vão em 500].
[4] Cartas Portuguesas ou somente Cartas será a denominação que utilizaremos com maior frequência doravante.

[5] BARRENO, M.I.; HORTA, M.T.; COSTA, M.V. – Novas cartas portuguesas. Lisboa: Futura, 1974. 2ª Ed.

[6] DELGADO, Humberto – O infeliz amor de soror Mariana. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1964. No ano seguinte, numa das suas visitas clandestinas a Portugal e a pretexto de um encontro forjado na raia, próximo de Badajoz, com elementos da oposição ao regime, Delgado é assassinado pela PIDE, juntamente com a sua secretária Arajaryr Campos. No monumento construído em sua memória no local para onde atiraram os dois corpos, no Camiño de los Malos Pasos, próximo de Vila Nueva del Fresno, não existe sequer uma pequena placa que homenageie a mulher que o acompanhava, cuja emancipação ele tanto defendia, razão porque vemos nalguns livros, como o da infeliz Mariana, monumentos mais úteis à sociedade, embora menos visíveis do que alguns monumentos [Arajaryr Campos foi, por fim, homenageada devidamente, em 2006].
[7] DARNTON, Roberto – “Historia de la Lectura”. In Formas de Hacer Historia. Madrid: Alianza Editorial, 1993. p.179

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Lettres d`amour d`une religieuse portugaises ecrites au chevalier de C.oficier français en Portugal

Lettres d`amour d`une religieuse portugaises ecrites au chevalier de C.oficier français en Portugal
Pormenor da gravura de J Padebrugge 1696

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Calandrónio é um nome que vem epigrafado numa lápide funerária visigótica exposta no Núcleo Visigótico do Museu Regional de Beja. Num texto comovente Calandrónio chora a perda da sua sobrinha Maura, de olhos muito belos e formosa de feições, que mal fizera quinze anos. Por ser um documento pacense extraordinário,do século VII, repleto de sensibilidade, adoptei-lhe a memória. Leonel Borrela