sábado, 27 de outubro de 2012


A importância do património cultural português e o relativo desconhecimento público do Museu Regional de Beja

Há 35 anos que “habitamos”, como funcionário público, o Museu Regional de Beja. Nove anos antes já o conhecíamos: o edifício, o espólio e os seus funcionários. Não nos recordamos de cada dia passado na instituição museológica, mas organizámos uma espécie de mensário dos acontecimentos que mais nos marcaram ao longo de pouco mais de quarenta anos. Integram esta memória dezenas e dezenas de conversas e observações, mais ou menos interessantes, umas com questões bem pertinentes às quais parcialmente se deu resposta adequada, outras, envolvendo, por um lado, emoções fortes e, ainda outras, por outro lado, situações bastante divertidas, quer relacionadas com o funcionamento interno do próprio museu – aspectos que não abordaremos neste momento, por razões óbvias -  quer com os turistas nacionais e estrangeiros, cujas visitas nos merecem alguma discriminação pelo seu significado especial. Destas, seleccionámos somente quatro pelo seu cariz singular.
Certo dia, um casal brasileiro, professores de meia-idade, ficou escandalizado com o que considerava uma lacuna grave na sala de recepção do museu. “Faltava” um retrato do fundador de Portugal, D. Afonso Henriques!, “muito mais importante para Beja do que os dois retratos dos seus primeiros duques”, dizia o senhor, ambos desconhecendo que os infantes D. Fernando e Dª Beatriz, tinham sido os fundadores do convento da Conceição (1459), onde, afinal, o museu se encontra hospedado desde 1927. Após tudo ser muito bem explicadinho, lá saíram satisfeitos com o museu e com a cidade, embora D. Afonso Henriques não lhes saísse da cabeça. Precisavam mesmo de ir a Guimarães! Ainda os avisei de que lá, só a estátua…
Noutro dia, um senhor português, engenheiro, mostrou-se muito preocupado com a “barriga” algo proeminente, aspecto que ainda apresenta, da parede da frontaria da igreja da Conceição, a que fica virada para o Largo dos Duques: “Cuidado! Aquilo um dia atinge o ponto de ruptura e vem tudo por aí abaixo.” Descansámo-lo e levámo-lo a ver, no cimo do exterior da capela-mor, uma escultura de mulher, em trabalho de parto, desde há quinhentos anos - e o bebé sem sair e o ventre sem ceder… e ele, de tão preocupado, a rir, a ver, a rir até mais não puder! – Como vêem também há quem se divirta, uns com as preocupações dos outros e estes com as respostas daqueles. Nunca mais nos falou em fissuras, mas, um dia destes, andava raladíssimo com a Torre de Menagem do castelo de Beja e aconselhei-o, mais uma vez, a ir ver a barriguinha que não cede, no convento da Conceição. Gargalhadas!
Há um recanto, no fim do segundo piso do museu, onde se reintegrou há algumas dezenas de anos a célebre janela de soror Mariana Alcoforado (1640-1723), uma das freiras do convento que ficou famosa pelas cinco cartas de amor que escreveu a um nobre francês, o marquês de Chamilly. Se para alguns visitantes lhes basta olhar e espreitar pela janela, praticamente sem lhe tocarem, para outros, isolados ou em grupo, como os japoneses, não é bem assim, conforme vimos várias vezes. Para este povo do sol  nascente, é essencial tocar nas grossas grades de ferro, se possível, em silêncio, meditar um pouco e sentir igualmente o frémito de emoção que trespassou o coração de Mariana quando, à janela, viu pela primeira vez passar às Portas de Mértola, em Beja, o garboso cavaleiro francês. Tocar na grade, será o mesmo que sentir mais próximo de si, até dentro de si, o que ia na alma da desditosa freira bejense, quando escreveu aquelas cartas tão desmesuradamente apaixonadas e, o povo japonês, conhece bem, através da sua própria História, a procura incessante do amor comovente, desencontrado e louco, entre Hisamatsu e Osome.
Houve visitas guiadas e tocantes, como a de um pequeno grupo de visitantes portugueses, vindos do Porto, a quem explicámos da melhor maneira possível a diferença entre a colecção de pintura primitiva portuguesa dos séculos XV e XVI – mais colorida, mais mística, associada às escolas da Flandres e de Itália, ao sucesso das descobertas marítimas e a uma corte de gente culta, entre outros aspectos -  e a espanhola, do século XVII – reflexo da perda da independência de Portugal face a Espanha, do absolutismo monárquico, da Inquisição, do Índex, da arte tenebrista e naturalista, de feição barroca, como a de Ribera, de forte intensidade dramática, etc. Pretendíamos valorizar, por outras palavras menos ouvidas, uma parte da pinacoteca do museu e, sinceramente, ainda hoje ignoramos a profundidade do que tentámos transmitir. Ficou-nos, a nós e aos visitantes, um estranho carpido nas gargantas e nada mais houve a dizer senão olharmos uns para os outros e silenciarmos uma situação invulgar. A empatia emocional de um grupo inteiro por uma frase, por um quadro ou por uma sala onde pudemos sentir, de um lado, a alegria e a esperança, e, do outro, a tristeza e o desespero.

Leonel Borrela

Nota: Este texto foi especialmente escrito para os meus amigos do facebook e vamos colocá-lo previamente no nosso blogue sobre Mariana Alcoforado http://lettres-portugaises.blogspot.com .
Esperamos que todos entendam o verdadeiro significado do título. Haverá sempre outras oportunidades para abordarmos estes e outros assuntos. O Museu Regional e a História da cidade de Beja afinal são parte indispensável da nossa vida.
O postal que anexamos é de 1960 e mostra uma das galerias – a quadra do Rosário – do claustro do extinto convento de Nª Sra. da Conceição onde funciona o Museu Regional de Beja. Elaborámos os carimbos dos CTT para a Comemoração, em 2009, dos 550 anos da fundação do convento. 

Lettres d`amour d`une religieuse portugaises ecrites au chevalier de C.oficier français en Portugal

Lettres d`amour d`une religieuse portugaises ecrites au chevalier de C.oficier français en Portugal
Pormenor da gravura de J Padebrugge 1696

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Calandrónio é um nome que vem epigrafado numa lápide funerária visigótica exposta no Núcleo Visigótico do Museu Regional de Beja. Num texto comovente Calandrónio chora a perda da sua sobrinha Maura, de olhos muito belos e formosa de feições, que mal fizera quinze anos. Por ser um documento pacense extraordinário,do século VII, repleto de sensibilidade, adoptei-lhe a memória. Leonel Borrela