quarta-feira, 5 de agosto de 2009

Cartas checas da freira portuguesa


Uma colecção bibliográfica temática parece ter à partida um âmbito mais circunscrito do que na realidade tem. No caso do estudo das lettres portugaises traduites en françois[1] e da sua rápida projecção europeia e mundial exige-se ao investigador o conhecimento e, ou, o contributo de várias áreas das ciências sociais e humanas, nomeadamente história, estudos literários, economia e estatística. Se contabilizarmos no mundo inteiro, em mais de 30 idiomas diferentes, 600 edições das Cartas, adstritas a publicações periódicas e não periódicas, número ainda assim de certa relevância, mas insuficiente para o que seguramente anda publicado, vemos como é grande a sua fortuna crítica.
Tal celebridade não se deve somente à inovação literária e às traduções que ao longo dos séculos delas foram feitas, pois não devemos esquecer as versões poéticas e as dezenas e dezenas de ilustrações – expressas em gravura, desenho, litografia, pintura e fotografia - que as interpretaram desde o período barroco até à contemporaneidade. Complementarmente a música, a escultura, a medalhística e a esfragística, e, principalmente, os ensaios crítico-literários acerca da polémica que envolve a origem das cartas, converteram-nas ainda mais num assunto fascinante e incontornável, quando se trata de historiar e glorificar a paixão e o amor de uma mulher desiludida por um homem, assim como de estimulo na luta politica feminina pela sua emancipação[2].
O título desta crónica refere-se às cartas checas da freira portuguesa, publicações que ainda não possuíamos na nossa colecção alcoforadiana que, com perto dos 500 exemplares, integra a primeira edição de Barbin, saída a 4 de Janeiro de 1669. Há cerca de três meses, mercê duma visita a Praga, o nosso filho, José Miguel Rita Borrela, presenteou-nos com duas lindas impressões checas de Portugalské Listy: uma de 1921, sem ilustração, no formato 16º (bastante pequeno), tradução de Otto Elexhauser, editado por Arthur Novák, em Praga[3]; a outra edição, também de A. Novák, de formato maior, in 8º, data de 1916, com gravuras de T. Francisco Simon, tradução e epílogo de Hanus Jelinek. É desta segunda edição, em livro, que pretendemos mostrar a gravura da 3ª carta, assim como o começo dela em língua checa[4], por outro lado a imagem do cólofon, hoje em desuso, é um pormenor editorial, imprescindível no estudo bibliográfico, onde consta normalmente o nome dos vários intervenientes no processo de impressão do livro (autor, ilustrador, editor, impressor, compositor), tipo de papel, razão da tiragem especial ou não, neste caso é o exemplar 612 de uma tiragem especial de 730, etc..
Das edições checas sabemos que a primeira tradução, de Hanus Jelinek, saiu em 1908, na revista “Lumir”; seguiu-se a primeira edição em livro, em 1910, tradução de H. Jelinek, editora Nova de Boucek, litografias de Francisco Kysel, além das outras três edições diferentes que referimos anteriormente de 1916, 1921 e 1926. É interessante notar que algumas das edições de países do leste europeu – Rússia, Polónia, Checoslováquia e Roménia – coincidem com o período da I Grande Guerra, facto que terá alguma relação com a grande mobilidade que os períodos de guerra normalmente proporcionam. O mesmo já havia acontecido durante as invasões napoleónicas e nas guerras anteriores setecentistas e seiscentistas, em que a maior mobilidade por toda a Europa e fora dela, de gente tão diferente contribuiu para o estreitar de relações entre os povos e a transmissão de ideias novas e o conhecimento de casos exóticos. É, sem dúvida, pelo menos nos primeiros 250 anos, desde 1669, em conjunturas desta natureza, associadas ao iluminismo e romantismo, que as cartas de amor atribuídas a Mariana Alcoforado, vão sendo gradual e rapidamente conhecidas pelo mundo inteiro. Em Portugal os anos de 1915 a 1918 viram sair a lume obras de Teófilo Braga, Albino Forjaz de Sampaio, Júlio Dantas, Ruy Chianca, Manuel Ribeiro e Conde de Sabugosa, entre outros - a I República, apesar de algumas vozes contra, esteve de alma e coração com Mariana.
Deste 18 de Maio – Dia Internacional dos Museus - a 19 de Junho de 2006 terá lugar, mais uma vez, no Museu Regional de Beja, instalado nos restos do extinto mosteiro de Nª Sra. da Conceição, onde professou e viveu Soror Marianna Alcoforado (1640-1727), uma exposição sobre a religiosa portuguesa. Trata-se de uma obra artística “literalmente” tecida por Cristina de Melo, cuja urdidura pretende revelar-nos, sob o título “O segredo de Mariana”, intimidades insuspeitas e de algum modo invocadas pela criação musical do compositor Gilles Sivilotto, acompanhados, no acto inaugural, por uma palestra do poeta Nuno Júdice sobre as Cartas Portuguesas e a sua presumível autora.


Publicado por Leonel Borrela in Diário do Alentejo de 19 de Maio de 2006

[1] “Lettres portugaises traduites en françois” é o título da primeira edição realizada em Paris, por Claude Barbin, em 1669. São cinco cartas de amor, cujos originais jamais apareceram, presumivelmente de origem portuguesa, embora alguns investigadores as queiram remeter para a literatura francesa. A seu tempo daremos notícia desta quase inesgotável polémica. Há uma tendência bastante generalizada para negligenciar este título que as dá como nossas e traduzidas para francês. Normalmente sublinha-se somente Lettres Portugaises e, quando é citado o título, ignora-se, também bastantes vezes, o verbo francês traduire (traduzir) substituindo-o por écrire (escrever), além de se transcrever françois como français. Cartas Portuguesas traduzidas em francês não é, obviamente, o mesmo que Cartas Portuguesas escritas [que poderiam ter sido ou não traduzidas] em francês.
[2] BARRENO, M.I.; HORTA, M.T.; COSTA, M.V. – Novas cartas portuguesas. Lisboa: Futura, 1974. 2ª Ed. [1972]
[3] O Museu Regional tem também um destes exemplares, na sua colecção bibliográfica alcoforadiana de Godofredo Ferreira, além de uma outra edição de B.M. Klika Praza, de1926, traduzida por Hanus Jelinek e gravura de Hana Dostalova.
[4] Segundo a tradução de Manuel Ribeiro (1913, 61), o começo da Carta terceira será assim: “Que será de mim? E que queres tu que eu faça? – Quão longe me vejo de tudo quanto tinha imaginado! Contava que me escrevesses de todas as terras […]”

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Lettres d`amour d`une religieuse portugaises ecrites au chevalier de C.oficier français en Portugal

Lettres d`amour d`une religieuse portugaises ecrites au chevalier de C.oficier français en Portugal
Pormenor da gravura de J Padebrugge 1696

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Calandrónio é um nome que vem epigrafado numa lápide funerária visigótica exposta no Núcleo Visigótico do Museu Regional de Beja. Num texto comovente Calandrónio chora a perda da sua sobrinha Maura, de olhos muito belos e formosa de feições, que mal fizera quinze anos. Por ser um documento pacense extraordinário,do século VII, repleto de sensibilidade, adoptei-lhe a memória. Leonel Borrela