sábado, 5 de novembro de 2011

José Agostinho de Macedo e as "Lettres Portugaises"

            José Agostinho de Macedo – I

José Agostinho de Macedo (11/09/1761 - 02/10/1831), natural de Beja, faleceu em Lisboa, onde tinha professado, em 1778, na Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho, à Graça. Dado o seu espírito ainda jovem e irrequieto, nada adequado às normas da Ordem, e, ainda por cima, acusado e condenado pela justiça como autor de várias acções criminosas, como ladrão e frequentador de locais de prostituição - suspeições ainda por averiguar convenientemente, para que a verdade histórica seja reposta com justiça -  foi expulso quatro anos depois, considerando-o, os seus superiores, contumaz e incorrigível. Dispensado dos votos monásticos, torna-se um pregador notável para o seu tempo. Membro da Nova Arcádia, inimigo da Revolução Francesa (1789), portanto dos jacobinos, integrou mais tarde a Arcádia de Roma adoptando o pseudónimo de Elmiro Tangideu. Escreveu bastante, sobrepondo-se, na sua vasta obra, os textos políticos, defensores do regime absolutista contra os liberais, e a poesia épica, no “género” da dos Lusíadas. Bocage e Almeida Garrett foram alvo da sua natureza polémica e permanentemente descontente.
O historiador e político Oliveira Martins (1845-1894), na sua obra “Perfis”, de 1886 (editada postumamente em 1930),  teceu algumas considerações importantes sobre a vida e a obra do incompreendido “foliculário, […] fundador entre nós do jornalismo político, com o Desengano, com a Tripa Virada e com a Besta Esfolada, de que chegavam a tirar-se quatro mil exemplares! […] Os tempos tormentosos da passagem dos séculos XVIII para o XIX, com o esboroar de todas as coisas, desequilibraram o pensamento e o carácter desse homem poderoso, cuja força se perdeu num dilúvio de vulgaridades, numa indigesta montanha de folhetos, de jornais, de sermões, de cartas, de poemas e de versalhada, medíocre, mas espantosa, pela quantidade – um Himalaia, de calhaus rolados! […] Elmiro, com a batina desabotoada, as ventas largas cheias de rapé, abordoado a uma bengala, membrudo, violento, ossudo, desbragado, dava murros no balcão gorduroso dos Bertrands, ao Chiado, enchendo Lisboa com o estrépito das suas polémicas e com a fama da sua vida airada.
Andava amancebado com uma freira de Odivelas; passava as noites em arruaças e bebedeiras. Acusavam-no de ter furtado livros da livraria dos Paulistas, o que provavelmente era calúnia.
Fabricava poemas: O Oriente, o Gama, A Meditação, Newton, A Natureza, para não falar nos Burros, traduzindo numa linguagem friamente convencional, sem génio, sem colorido, as sensaborias banais do racionalismo naturalista do tempo. Fazia comédias, pregava sermões. Ensaiava o drama burguês moderno, inventado por Diderot, com a Clotilde e o Vício sem Máscara, e alinhavava dissertações filosóficas. A sua veia porém, a sua vocação, era a polémica. Inventou o jornal, nacionalizou o panfleto. Foi o mestre de S. Boaventura, autor do Mastigóforo, e de Alvito Buela, o autor do Cacete.”
Oliveira Martins finaliza o perfil de José Agostinho de Macedo defendendo a razão de ser do seu carácter tão singular do seguinte modo: ” apesar da sua banalidade, da sua monstruosidade cínica, apesar de tudo, foi Alguém. O povo amou-o, sentiu pelos seus nervos, falou pela sua boca. Porquê? Em primeiro lugar, porque o povo português, enervado por três séculos de decomposição, estava retratado na figura do padre. A força que ainda tinha esvaía-se toda em pedir arrocho, e em arrastar os cacetes apostólicos pelas portarias dos conventos e pelas vielas imundas das marafonas, cambaleando ébrio de cólera, e também de vinho frequentemente. Mas, em segundo lugar, a razão é outra. Dois homens podem entender-se para praticar uma traficância; muitos, é difícil – todos, nunca. Um povo pode ser cínico, mas não pode ser patife. Há sentimentos exclusivamente individuais, e a patifaria é um desses. Se um povo pratica acções criminosas, é porque perdeu a consciência do que seja crime. O povo é sempre sincero.
A sinceridade, eis aí o segredo de José Agostinho; a franqueza foi a sua força; o desinteresse, a origem do seu prestígio. O cinismo desbragado, isto é, a sinceridade e a franqueza levadas até à impudência, com aquele desaforo dos que, não tendo vergonha têm o mundo por si, foram a nota dominante e a faculdade íntima do polemista que se achou desse modo num perfeito acordo com o povo. Plebeu, sem perfídias de civilizado, rústico, sem ambages de político, foi um arrieiro das letras, é verdade, mas não foi um chatim.
Cobiçava a fama, cobiçava a popularidade mais vulgar; mas não cobiçava o dinheiro, ídolo exclusivo dos dias de hoje [Oliveira Martins dizia isto no final do século XIX e, hoje, ultrapassado o século XX, o dinheiro não continua a ser o mote da canção de embalar dos políticos e dos oportunistas?] . Viveu sempre quase mendigo. As letras e o púlpito davam-lhe apenas para não morrer de fome. Era, a valer, o tipo do demagogo antigo ao lado de D. Miguel que reproduzia a imagem dos velhos tiranos lacedemónios do Peloponeso ou da Sicília. Além disso, levava sobre os dias de hoje e sobre os nossos foliculários outra vantagem: as suas verrinas não eram postiças, convencionais. Havia ódios, o que não deixa de ser um bem quando há antagonismos fundamentados. A imprensa não era ainda uma comédia representada para ilusão da galeria. Quando se jogavam injúrias, arriscavam-se facadas e tiros. Era sério. Finalmente, havia uma outra vantagem, se comparamos a Besta esfolada às Tripas viradas dos dias de hoje: é que as injúrias inflamantes, os insultos obscenos, as verrinas descompostas, dirigiam-se a um partido odiado que, de resto, pagava na mesma moeda, em vez de se dirigirem como hoje, que tudo são questões de pessoas, a fulano ou sicrano, portadores, quando muito, de uma individualidade incómoda ou de um interesse cúpido.
Estudando comparadamente o jornalismo português com meio século de intervalo, vemos que a tradição de José Agostinho se mantém nuns pontos e se oblitera em outros. Oxalá seja para melhor!”
Nas suas “Cartas filosóficas a Attico” (edição da Impressão Regia de Lisboa, de 1815), Macedo desenvolve, entre muitos outros temas de carácter militar, político, social, religioso, cultural e económico, o tema do provincianismo segundo a sua vertente do patriotismo. Tudo para impressionar uma das suas novas paixões, uma freira Trina… a dado passo, até julgamos que se refere a uma religiosa portuguesa, provinciana, também de Beja, que tem dado que falar. Ilusões do gosto e do nosso ofício, sem dúvida.
Leonel Borrela

Publicado no jornal Diário do Alentejo em 17 de Agosto de 2007.


 José Agostinho de Macedo – II


Como vimos, José Agostinho de Macedo (11/09/1761 - 02/10/1831), natural de Beja, foi o grande polígrafo dos começos conturbados do século XIX português. Nas suas “Cartas filosóficas a Attico” (edição da Impressão Regia de Lisboa, de 1815), desenvolveu, entre muitos outros temas de carácter militar, político, social, religioso, cultural e económico, o tema do provincianismo segundo a sua vertente do patriotismo e enalteceu também, a seu modo, as virtudes intelectuais da mulher.
As suas vinte e sete Cartas foram escritas para impressionar uma das suas novas paixões, uma freira Trina (ver página inicial da dedicatória), D. Joanna Thomazia de Brito Lobo de S. Paio, natural de Moura, “sua Pátria”, a qual não deve ser privada de “uma gloria que é sua, que é nossa, que é do Reino, e a sua ilustre Religião[1] de mais um timbre”, […] que “sabe unir muito bem a virtude e a ciência; e quando é constante esta união, e esta harmonia, não deve ter clausura o seu nome, nem devem ficar na sombra do Claustro seus conhecimentos, é justo que veja o mundo ilustrado a razão com que os admiro, e até a razão com que os invejo. O sentimento delicado é próprio do seu sexo, é regra dos seus juízos, e poucas vezes se engana, e nestas ocasiões sentimentais sobre as obras de puro engenho, não leio uma só carta de V. S. que a não compare, para a preferir, à mais bem lançada de Sévigné.” (1815, pp inumeradas da dedicatória).
A Carta XVI, pp.213 a 230, discorre sobre várias noções de patriotismo e a noção de grandeza daqueles que vivem nas grandes cidades. Macedo valoriza a História como repositório de lições que se devem consultar para melhor orientação dos homens nos seus actos políticos, comerciais e culturais. A dado passo, referindo o vanglorioso e excessivo patriotismo que se vivia na Atenas clássica ao ponto de uma “revendona” da praça não reconhecer os literatos estrangeiros, Macedo narra o seguinte: “Li, não sei em que livro, que celebrando-se diante de uma matronaça de Paris os olhos formosos, serenos, e alegres de uma rapariga que tinha nascido longe de Paris, pronunciou gravemente que ela conhecia aquela rapariga, e que ela confessava que com efeito tinha bons olhos, mas que eram bons quanto os pode ter bons uma pessoa de Província: não cito o nome do livro, porque me não lembra, mas posso, meu Ático, certificar-vos que com efeito li isto com estes meus dois olhos, que não tiveram a ventura de nascer em Lisboa, mas em Beja, e por isso ficam sendo olhos Provincianos. […] o que me impacienta é o célebre La Bruyere, que, em seus caracteres feitos para emendar os homens, censura as pessoas que nasceram nas Províncias, porque não têm polidez, e luzente verniz das que nasceram em Paris. […] Contudo, as grandes Cidades terão sempre maiores vantagens, e prerrogativas que as pequenas, e quem nasce no meio de uma populosa Corte acha de ordinário com mais facilidades preparados os meios para uma boa educação, e para o estudo das boas artes e disciplinas. Mas porque vós nascestes em Lisboa, e eu em Beja, tendes acaso razão de vos entonar, e ensoberbecer pela magnificência publica? Deveis acaso julgar-vos grande porque Lisboa tem grandes praças, grandes ruas, grandes Templos, e grandes Palácios? E eu, porque nasci em Beja, devo acaso reputar-me um mesquinho mal olhado da ventura, porque permanecendo e vivendo naquele sombrio município Romano, não acordo alvoraçado depois da meia noite com o estrepido das carruagens que saem do Teatro, ou porque não desperto sobressaltado de madrugada com o motim dos pregões, e burburinho da gente? E serão para mim sem sabor os passeios por aqueles extensos e despidos campos, porque uma onda de povo não me leva em si, e outra me traz contra minha vontade!”.
Macedo é deveras um atento observador do seu tempo. Julgava que a Pátria se deveria rejubilar por ser o berço de profundos e exemplares entendimentos, uma pátria das ciências, das artes úteis e liberais, e não uma pátria que se gabasse por ter alfaiates caprichosos, cozinheiros exóticos e cabeleireiros mais elegantes. Também na província era possível encontrar quem tivesse valor, quem fosse Alguém (como diria mais tarde Oliveira Martins), quem, no fundo, sabia muito mais do que contava, embora dissesse que já se não lembrava do nome do livro que lera, livro que era, afinal, o livro consistente, o do verdadeiro saber, ao qual se resumiam todos os outros: o conhecimento das leituras e das experiências de uma vida muito atribulada.
Em 1815, quando as “Cartas a Ático” foram editadas, já se conhecia, pelo menos em Paris, o conteúdo da nota do abade Boissonade, erudito francês, que trouxe para a ribalta, em 1810, o nome de Mariana Alcoforado como a autora das “Lettres Portugaises”. As Cartas de Macedo aludem a várias celebridades femininas como sejam as Mmes. de Stael e de Sévigné, ambas referenciando nas suas obras literárias as “Lettres Portugaises”, pelo que é muito provável que o autor tenha conhecido o tema e, até, reconhecido a importância de Mariana, bejense  como ele. Aqueles olhos bejenses, provincianos, simples e verdadeiros, aliados incondicionais da paixão, bem poderiam ser os dela…

Leonel Borrela

Publicado no jornal Diário do Alentejo em 24 de Agosto de 2007.



[1] Este termo, Religião, escrito assim, ainda em 1815, para qualificar a devoção católica da religiosa, é muito importante para a análise da autenticidade das Cartas Portuguesas atribuídas à freira bejense Mariana Alcoforado, pois têm sido vários os autores/opositores da tese Alcoforadista que o têm apresentado como um termo quase impossível de utilizar, naquele contexto, por uma religiosa portuguesa no século XVII.




Nota: Adquiri hoje e conclui a leitura da obra de António Mega Ferreira intitulada "MACEDO - Uma biografia da infâmia", recentemente editada pela Porto Editora, Outubro 2011. É um belíssimo trabalho de pesquisa sobre a vida e a obra diversificada do grande polemista bejense e do contexto histórico que o envolve. As imprecisões sobre o aspecto, a história  e  a localização da casa onde nasceu Macedo, que era uma simples casa de um só piso e não de dois (resultado das obras realizadas, cerca de 1848,  por Sousa Porto para a primeira imprensa lito-tipográfica de Beja), portanto, muito menos "nobre" do que o autor julga - na qual não está provado que tenha vivido Jacinto Freire de Andrade, nem vai dar à praça do município bejense - em nada interferem na coerência da obra que examina em pormenor a provável origem alfacinha do truculento padre, a sua relação com os seus contemporâneos, amigos e inimigos, o seu lado mais violento e detestável na política, mas também a sua sagacidade na previsão, por exemplo, das consequências políticas da fuga real para o Brasil, aquando das invasões francesas, assim como a sua ambição em querer ser o melhor, nomeadamente na poesia, a turbulência dos seus amores, etc.. 

Mega Ferreira considera, a p.159 da sua obra, que as "Cartas Filosóficas a Attico" - das quais destacamos na nosso estudo, acima apresentado, alguns excertos da  carta XVI - "são do melhor, mais razoável e contidamente argumentativo que saiu da pena de José Agostinho" e que (p.151) se lhe dessem a escolher uma mão cheia de escritos do padre que quisesse levar para uma ilha deserta, desprezaria quase tudo, mas levaria com ele, embrulhados em duas ou três das melhores peças da sua correspondência, e na IV e VII das suas Cartas Filosóficas a Attico (que tratam do belo e do sublime, respectivamente), os quatro volumes in-octavo do Motim Literário, que reúnem fascículos dos Solilóquios dados à estampa em 1811, em entregas semanais. Em suma, levaria a sua autobiografia como já a entendera Teofilo Braga, o retrato do "possante polígrafo e o Homem, de letra e de corpo inteiro."


LB








Lettres d`amour d`une religieuse portugaises ecrites au chevalier de C.oficier français en Portugal

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Pormenor da gravura de J Padebrugge 1696

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Calandrónio é um nome que vem epigrafado numa lápide funerária visigótica exposta no Núcleo Visigótico do Museu Regional de Beja. Num texto comovente Calandrónio chora a perda da sua sobrinha Maura, de olhos muito belos e formosa de feições, que mal fizera quinze anos. Por ser um documento pacense extraordinário,do século VII, repleto de sensibilidade, adoptei-lhe a memória. Leonel Borrela