quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Janela de Mértola I e II



A Janela de Mértola I

A celebridade da Janela de Mértola ou de soror Mariana Alcoforado advém de uma passagem textual da quarta das cinco cartas de amor dirigidas a Noel Bouton, militar francês, mais conhecido por Chamilly ou marquês de Chamilly (este nobre francês é apenas um de entre os muitos milhares de estrangeiros, também ingleses e alemães, que auxiliaram Portugal, por questões de poder e política anti-castelhana, na luta contra o domínio espanhol, entre os anos de 1640 e 1668). A ardente paixão teria ocorrido, já no final da Guerra da Restauração de Portugal, entre os anos de 1666 e princípio de 1668. Durante 1668, Chamilly teria recebido cinco cartas, as únicas que se conhecem e que foram seleccionadas e editadas por Claude Barbin, livreiro parisiense, em Janeiro de 1669, sob o título de “LETTRES PORTVGAISES TRADVITES EN FRANÇOIS”.

O Convento de Nossa Senhora da Conceição havia sido fundado cerca de 1459 pelos primeiros duques de Beja, os Infantes Dom Fernando e Dona Brites, para albergar religiosas de clausura rigorosa da Ordem de Santa Clara, sob jurisdição franciscana. Edifício de grande porte, foi crescendo, em área e volume, ao mesmo tempo que aumentava a sua população religiosa, atingindo em meados do século XVII mais de duzentas freiras, além de noviças, protegidas, criadas e escravas. Pelos bens materiais que possuía - além de uma nau para serviço particular, entre as várias regiões do continente e os arquipélagos dos Açores e da Madeira, de onde chegaram a vir toneladas de trigo para Beja, em anos de escassez - o Convento da Conceição foi considerado, por Frei Jerónimo de Belém, um dos mais ricos do país, senão mesmo o mais rico. As encomendas de obras artísticas de pintura mural e de cavalete, escultura e ourivesaria, mármores e talha dourada, azulejaria e tecidos, eram disputadas por uma comunidade aristocrata, poderosa e rica, que não se revia somente na que deveria ser uma humilde Casa do Senhor. Divididas entre os dois “partidos” conhecidos e bem documentados, de S. João Baptista e de S. João Evangelista, competiam com obras e festividades cada vez mais onerosas numa espiral descontrolada que acabaria, drasticamente, por lhes antecipar o fim, reforçado pelo Iluminismo e pelas ideias liberais e republicanas. Em Portugal, extintas as ordens religiosas, desamortizados (secularizados, nacionalizados) os seus bens, procedeu-se, no caso do convento da Conceição, após a morte da última freira, à sua demolição parcial, entre 1892 e 1895, restando actualmente cerca de 35% da área que ocupava e 20% do seu volume arquitectónico. Foi obra! Teria sido totalmente demolido, como já fora o Paço dos Infantes, Duques de Beja, se o bispo de Beja, D. António Xavier de Sousa Monteiro, não tem pensado em adaptá-lo a Sé, como divulgámos em crónica anterior. Era o progresso!

Até que enfim, a Janela de Mértola, apeada do seu lugar original aquando das demolições do final do final do século XIX… Já mostrámos anteriormente várias fotos e desenhos dela, mas queremos voltar a relembrá-la deixando algumas ideias, facilmente concretizáveis, aos cuidados das entidades estatais e autárquicas que tutelam o edifício histórico e o museu regional de Beja.

A janela, ou mais propriamente as grades de ferro da janela, facto e símbolo da clausura em que viveram Mariana Alcoforado e todas as religiosas do convento, e por extensão todas as religiosas do país, merece uma atenção diferente da que tem tido até agora. Há pouco mais de sessenta anos, a janela, então reconstituída num recanto do pátio do claustro, na área da antiga lavanda, enquadrava a laje tumular da família dos Alcoforados de Beja, circundada por uma moldura de azulejaria de Manizes. Era uma “salganhada”, própria da época, com o fim de homenagear Mariana – a laje tinha vindo do túmulo familiar que os Alcoforados possuíam na igreja conventual de S. Francisco (actual Pousada), os azulejos quatrocentistas eram do antigo coro baixo da igreja da Conceição.

Abel Viana não acreditava na história amorosa da freira, pelo que a janela pouco lhe dizia… ao contrário de Belard da Fonseca, o primeiro director, interino, do museu, que a defendia de todos os modos, a ponto de escrever o melhor trabalho que conhecemos sobre a autenticidade da autoria portuguesa das Cartas, atribuindo-as, e fazendo coro com outros autores, a soror Mariana Alcoforado (1640-1723). Sob os cuidados de Belard, a janela trasladou do recanto sombrio do claustro para o extremo do longo corredor do 2º piso, a antiga quadra dos Santos, ficando de novo orientada, embora cerca de trinta metros mais recuada, para o local das portas romanas de Mértola.

Até aí tudo bem, a janela gradeada já lá está há quarenta anos, vê-se razoavelmente bem do interior, embora só se distinga a grade de ferro a pouco menos de dois ou três metros. O problema consiste numa armação de madeira, colocada, entre a grade e a protecção de vidro, ao que parece com objectivos simbólico-ornamentais, descabidos para o fim em vista que, recordamos, é o de expor a janela com o aspecto mais aproximado que tinha quando se realizaram os levantamentos fotográfico (1890) e desenhísticos, em Fevereiro de 1894. Se, por um lado, a ideia de colocar a janela no local onde se encontra foi boa, infelizmente, por outro, mesmo de muito perto, gera-se a confusão entre a estrutura reticulada dessa armação de madeira e a grade de ferro. A juntar a esta amálgama visual, a própria protecção de vidro também está dividida em várias partes.

Como a janela de Mariana ou de Mértola é uma das principais janelas do Alentejo, cartão de visita incontornável do nosso património cultural, através da qual, mesmo assim, tantos visitantes exorcizam os seus males de amor, é urgente que se lhe devolva alguma da sua originalidade, retirando a armação de madeira que a “esconde” e colocando, no exterior, uma placa inteira de vidro por forma a permitir a visão integral da grade, por dentro e por fora.

O desenho é de Rosa Júnior, datado de Fevereiro de 1894, da colecção do Museu Regional, e mostra o aspecto que teria a janela de Mértola, vista de sul para norte, e de baixo para cima, próximo do local de entrada dos serviços municipais do SMAS, na rua Visconde da Boavista; reproduz-se também o frontispício da primeira edição, datada de 1669, das “Cartas portuguesas traduzidas em francês”, da oficina de Claude Barbin. O facto – a janela gradeada – e a fonte de informação.

In Diário Alentejo de 16 de Fevereiro de 2007.



Janela em 1890, foto de Camacho.  Colec. autor


                                            
A JANELA DE MÉRTOLA II

Como vimos, em crónica anterior, de 16 de Fevereiro de 2007, a janela de Mértola ou de Soror Mariana Alcoforado está actualmente situada no extremo do corredor do 2º piso do Museu Regional de Beja (MRB). No extracto de uma planta de 1870 que publicámos, em primeira-mão, na Iconografia de 20 de Junho de 1997, podemos vê-la na posição exacta que ocupava no extremo sudeste do convento da Conceição, virada para as portas romanas de Mértola. Dela viam-se, naturalmente, as duas grandes torres de protecção da entrada romana, assim como o grande túnel desta, integrado numa torre mais recuada, unida com as anteriores através de dois paramentos curvilíneos da muralha. Eram também visíveis as capelas de Nª Sra. dos Anjos e de Sto. António, mais as estruturas elevadas dos conventos de Nª. Sra. da Esperança e de S. Francisco.

Como sugerimos na crónica anterior, caso a janela venha um dia a ser desafectada das desconexas estruturas de madeira que escamoteiam as suas grades de ferro, será necessário contextualizá-la com uma pequena, sucinta e clara, exposição documental (enquadramento que já existiu, há pouco mais de vinte anos, organizado no final do anos sessenta do século passado, pelo então director da instituição, dr. António Belard da Fonseca). Exposição que deverá relembrar também os investigadores bejenses Manuel Ribeiro (Albernoa) e A. Belard da Fonseca (Beja) que trouxeram, respectivamente, para o debate da autenticidade portuguesa das “Lettres Portugaises”, documentação inédita e uma alegação ímpar, imprescindíveis como complemento da “Soror Marianna – A Freira Portugueza” de Luciano Cordeiro.

Um museu tem muitas vidas, assim como as colecções que nele se intentam preservar. O de Beja, instalado nos restos recuperados do Convento da Conceição (recuperados, isto é, dramaticamente conservados pela Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais, porque se se atende aos azulejos - e destes nem vale a pena falar, tal é o seu estado de degradação, nomeadamente na quadra do Evangelista - não se atende à talha dourada da igreja conventual, ou à cobertura do edifício, nem à pintura mural. Um problema de conservação, gravíssimo, por resolver num monumento único em Portugal, que só por si, já tantos o têm dito, é um autêntico museu), já passou por toda a espécie de experiências museológicas, mesmo daquelas, ainda hoje visíveis, que pertencem a um tempo em que não se falava, tal como hoje se fala em profusão, da nova museologia. Embora os conceitos da nova museologia, quando aplicados a um edifício concebido de raíz para albergar um museu com determinado acervo, não constituam um embuste e sejam de facto necessários, encontram entraves naturais quando impostos a um espaço impregnado de memória-história, como é o caso do convento da Conceição.

Se actualmente o que resta do convento é, apesar da sua singularidade monumental, somente uma parte do antigo cenóbio e se a janela de Mértola, trasladada do seu local original, é o documento chave para a maioria dos admiradores das Cartas Portuguesas, atribuídas à religiosa que nele viveu e morreu, falta reorganizar, em conformidade com a história local, nacional e internacional (vale a pena relembrar o estatuto internacional das cartas portuguesas, com mais de 600 edições, entre periódicos e não periódicos, traduzidas para mais de trinta idiomas da América, Ásia e Europa, desde 1669 até aos nossos dias), e com os novos ditames museológicos, o espaço em torno da janela mais visitada do Alentejo (porque, do país, deve ser a janela manuelina do convento de Cristo, em Tomar, objecto - desde que o turismo é turismo, e, Portugal, a sede dos descobrimentos marítimos da era moderna - de muito maior publicidade). E não há que temer em se fazer uma coisa em grande, em Beja, no Museu, sobre Mariana Alcoforado, independentemente das conjecturas que os detractores da autenticidade portuguesa das Cartas possam utilizar.

Constatamos com agrado que as comemorações, em Beja, do dia de Portugal, em 2002, vieram pôr na ordem - com a exposição documental e de homenagem a Mariana, sobre a questão das “Lettres Portugaises”- alguns opositores da autoria portuguesa das cartas, que muito oportunamente afluíram a mostrar-se alardeando o seu dissolvido discurso, enquanto outros, em Beja, muito afectados pelo sucesso do certame, abraçam agora, muito humildemente (percebe-se bem a sua hipocrisia), a figura literária de Mariana. E nós sorrimos…relembrando, do genial Cruz Malpique ("Como se faz um escritor”. Lisboa: Livraria Popular, 1939. p.51), esta passagem: “Depois de um belo sermão sobre a caridade, exclamava um avarento: Que belo sermão! Dá vontade de pedir esmola!”

Portanto, a janela de Mértola, carece em permanência de um adequado quadro museológico que faça justiça à cidade e ao convento onde nasceu, viveu e morreu Mariana Alcoforado, satisfazendo tal propósito expositivo a documentação iconográfica – plantas, desenhos, gravuras, pinturas e fotografias –, obras literárias e as transcrições mais representativas das Cartas Portuguesas. Como complemento, relativo ao quotidiano do convento, ao tempo de Mariana, poder-se-iam expor algumas das peças de arte sacra do antigo convento da Conceição, as quais pertencem ao acervo do museu, não variando muito do que antes se expunha no mesmo espaço museológico. A edição de uma pequena brochura bilingue, em francês e português, devidamente prefaciada com o Estado da Arte e a Fortuna Crítica das cartas e com a reprodução da primeira edição de 1669, mais a colecção existente de nove postais sobre Mariana, constituiriam uma oferta digna ao visitante.

Em suma: convento, janela, exposição documental + livro e postais = visitante satisfeito.

in Diário do Alentejo de 30 de Março de 2007.














des. Rosa Junior 4 Fev. 1894

Colec. MRB



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Lettres d`amour d`une religieuse portugaises ecrites au chevalier de C.oficier français en Portugal

Lettres d`amour d`une religieuse portugaises ecrites au chevalier de C.oficier français en Portugal
Pormenor da gravura de J Padebrugge 1696

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Calandrónio é um nome que vem epigrafado numa lápide funerária visigótica exposta no Núcleo Visigótico do Museu Regional de Beja. Num texto comovente Calandrónio chora a perda da sua sobrinha Maura, de olhos muito belos e formosa de feições, que mal fizera quinze anos. Por ser um documento pacense extraordinário,do século VII, repleto de sensibilidade, adoptei-lhe a memória. Leonel Borrela