Cartas portuguesas
Este blog destina-se a veícular informação diversa -fontes históricas, documentos bibliográficos e iconográficos - indispensável para o reconhecimento da autenticidade portuguesa das "Lettres Portugaises traduites en françois", A Paris, Chez Claude Barbin, MDCLXIX.
sábado, 19 de outubro de 2013
sexta-feira, 10 de maio de 2013
sábado, 27 de outubro de 2012
A importância do
património cultural português e o relativo desconhecimento público do Museu
Regional de Beja
Há 35 anos que “habitamos”, como funcionário público, o Museu Regional de
Beja. Nove anos antes já o conhecíamos: o edifício, o espólio e os seus
funcionários. Não nos recordamos de cada dia passado na instituição
museológica, mas organizámos uma espécie de mensário dos acontecimentos que
mais nos marcaram ao longo de pouco mais de quarenta anos. Integram esta
memória dezenas e dezenas de conversas e observações, mais ou menos
interessantes, umas com questões bem pertinentes às quais parcialmente se deu
resposta adequada, outras, envolvendo, por um lado, emoções fortes e, ainda
outras, por outro lado, situações bastante divertidas, quer relacionadas com o
funcionamento interno do próprio museu – aspectos que não abordaremos neste
momento, por razões óbvias - quer com os
turistas nacionais e estrangeiros, cujas visitas nos merecem alguma
discriminação pelo seu significado especial. Destas, seleccionámos somente
quatro pelo seu cariz singular.
Certo dia, um casal brasileiro, professores de meia-idade, ficou
escandalizado com o que considerava uma lacuna grave na sala de recepção do
museu. “Faltava” um retrato do fundador de Portugal, D. Afonso Henriques!,
“muito mais importante para Beja do que os dois retratos dos seus primeiros
duques”, dizia o senhor, ambos desconhecendo que os infantes D. Fernando e Dª
Beatriz, tinham sido os fundadores do convento da Conceição (1459), onde,
afinal, o museu se encontra hospedado desde 1927. Após tudo ser muito bem
explicadinho, lá saíram satisfeitos com o museu e com a cidade, embora D.
Afonso Henriques não lhes saísse da cabeça. Precisavam mesmo de ir a Guimarães!
Ainda os avisei de que lá, só a estátua…
Noutro dia, um senhor português, engenheiro, mostrou-se muito preocupado
com a “barriga” algo proeminente, aspecto que ainda apresenta, da parede da
frontaria da igreja da Conceição, a que fica virada para o Largo dos Duques:
“Cuidado! Aquilo um dia atinge o ponto de ruptura e vem tudo por aí abaixo.”
Descansámo-lo e levámo-lo a ver, no cimo do exterior da capela-mor, uma
escultura de mulher, em trabalho de parto, desde há quinhentos anos - e o bebé
sem sair e o ventre sem ceder… e ele, de tão preocupado, a rir, a ver, a rir
até mais não puder! – Como vêem também há quem se divirta, uns com as
preocupações dos outros e estes com as respostas daqueles. Nunca mais nos falou
em fissuras, mas, um dia destes, andava raladíssimo com a Torre de Menagem do
castelo de Beja e aconselhei-o, mais uma vez, a ir ver a barriguinha que não
cede, no convento da Conceição. Gargalhadas!
Há um recanto, no fim do segundo piso do museu, onde se reintegrou há
algumas dezenas de anos a célebre janela de soror Mariana Alcoforado
(1640-1723), uma das freiras do convento que ficou famosa pelas cinco cartas de
amor que escreveu a um nobre francês, o marquês de Chamilly. Se para alguns
visitantes lhes basta olhar e espreitar pela janela, praticamente sem lhe
tocarem, para outros, isolados ou em grupo, como os japoneses, não é bem assim,
conforme vimos várias vezes. Para este povo do sol nascente, é essencial tocar nas grossas
grades de ferro, se possível, em silêncio, meditar um pouco e sentir igualmente
o frémito de emoção que trespassou o coração de Mariana quando, à janela, viu
pela primeira vez passar às Portas de Mértola, em Beja, o garboso cavaleiro
francês. Tocar na grade, será o mesmo que sentir mais próximo de si, até dentro
de si, o que ia na alma da desditosa freira bejense, quando escreveu aquelas
cartas tão desmesuradamente apaixonadas e, o povo japonês, conhece bem, através
da sua própria História, a procura incessante do amor comovente, desencontrado e
louco, entre Hisamatsu e Osome.
Houve visitas guiadas e tocantes, como a de um pequeno grupo de
visitantes portugueses, vindos do Porto, a quem explicámos da melhor maneira
possível a diferença entre a colecção de pintura primitiva portuguesa dos
séculos XV e XVI – mais colorida, mais mística, associada às escolas da
Flandres e de Itália, ao sucesso das descobertas marítimas e a uma corte de
gente culta, entre outros aspectos - e a
espanhola, do século XVII – reflexo da perda da independência de Portugal face
a Espanha, do absolutismo monárquico, da Inquisição, do Índex, da arte tenebrista
e naturalista, de feição barroca, como a de Ribera, de forte intensidade
dramática, etc. Pretendíamos valorizar, por outras palavras menos ouvidas, uma
parte da pinacoteca do museu e, sinceramente, ainda hoje ignoramos a
profundidade do que tentámos transmitir. Ficou-nos, a nós e aos visitantes, um
estranho carpido nas gargantas e nada mais houve a dizer senão olharmos uns
para os outros e silenciarmos uma situação invulgar. A empatia emocional de um
grupo inteiro por uma frase, por um quadro ou por uma sala onde pudemos sentir,
de um lado, a alegria e a esperança, e, do outro, a tristeza e o desespero.
Leonel Borrela
Nota: Este texto foi especialmente escrito para os meus amigos do
facebook e vamos colocá-lo previamente no nosso blogue sobre Mariana Alcoforado
http://lettres-portugaises.blogspot.com
.
Esperamos que todos entendam o verdadeiro significado do título. Haverá
sempre outras oportunidades para abordarmos estes e outros assuntos. O Museu Regional
e a História da cidade de Beja afinal são parte indispensável da nossa vida.
O postal que anexamos é de 1960 e mostra uma das galerias – a quadra do
Rosário – do claustro do extinto convento de Nª Sra. da Conceição onde funciona
o Museu Regional de Beja. Elaborámos os carimbos dos CTT para a Comemoração, em
2009, dos 550 anos da fundação do convento.
quinta-feira, 12 de julho de 2012
quarta-feira, 11 de julho de 2012
sexta-feira, 8 de junho de 2012
Antes desta peça de teatro ser representada por Myriam Cyr, a encenadora inglesa Lisa Forrel passou por Beja - cidade de onde é natural Mariana Alcoforado - conhecemo-nos, trocámos algumas impressões sobre as Lettres Portugaises e falámos também da escritora e romancista luso-americana Katherine Vaz, autora de "Mariana" e com a qual tínhamos maior afinidade. Aquando da representação da peça na Broadway, em New York, as três senhoras reuniram-se e falaram de Beja, da Mariana, da nossa colecção bibliográfica sobre as Cartas de Amor, e Lisa Forrel enviou-me um postal do cartaz da peça. Foi mais um dia feliz.
http://cultureproject.org/highlights/cartas-love-letters-portuguese-nun/
http://cultureproject.org/highlights/cartas-love-letters-portuguese-nun/
sábado, 5 de novembro de 2011
José Agostinho de Macedo e as "Lettres Portugaises"
José Agostinho de
Macedo – I
José Agostinho de
Macedo – II
Nota: Adquiri hoje e conclui a leitura da obra de António Mega Ferreira intitulada "MACEDO - Uma biografia da infâmia", recentemente editada pela Porto Editora, Outubro 2011. É um belíssimo trabalho de pesquisa sobre a vida e a obra diversificada do grande polemista bejense e do contexto histórico que o envolve. As imprecisões sobre o aspecto, a história e a localização da casa onde nasceu Macedo, que era uma simples casa de um só piso e não de dois (resultado das obras realizadas, cerca de 1848, por Sousa Porto para a primeira imprensa lito-tipográfica de Beja), portanto, muito menos "nobre" do que o autor julga - na qual não está provado que tenha vivido Jacinto Freire de Andrade, nem vai dar à praça do município bejense - em nada interferem na coerência da obra que examina em pormenor a provável origem alfacinha do truculento padre, a sua relação com os seus contemporâneos, amigos e inimigos, o seu lado mais violento e detestável na política, mas também a sua sagacidade na previsão, por exemplo, das consequências políticas da fuga real para o Brasil, aquando das invasões francesas, assim como a sua ambição em querer ser o melhor, nomeadamente na poesia, a turbulência dos seus amores, etc..
Mega Ferreira considera, a p.159 da sua obra, que as "Cartas Filosóficas a Attico" - das quais destacamos na nosso estudo, acima apresentado, alguns excertos da carta XVI - "são do melhor, mais razoável e contidamente argumentativo que saiu da pena de José Agostinho" e que (p.151) se lhe dessem a escolher uma mão cheia de escritos do padre que quisesse levar para uma ilha deserta, desprezaria quase tudo, mas levaria com ele, embrulhados em duas ou três das melhores peças da sua correspondência, e na IV e VII das suas Cartas Filosóficas a Attico (que tratam do belo e do sublime, respectivamente), os quatro volumes in-octavo do Motim Literário, que reúnem fascículos dos Solilóquios dados à estampa em 1811, em entregas semanais. Em suma, levaria a sua autobiografia como já a entendera Teofilo Braga, o retrato do "possante polígrafo e o Homem, de letra e de corpo inteiro."
LB
José Agostinho de Macedo (11/09/1761 - 02/10/1831), natural de Beja,
faleceu em Lisboa, onde tinha professado, em 1778, na Ordem dos Eremitas de
Santo Agostinho, à Graça. Dado o seu espírito ainda jovem e irrequieto, nada
adequado às normas da Ordem, e, ainda por cima, acusado e condenado pela
justiça como autor de várias acções criminosas, como ladrão e frequentador de
locais de prostituição - suspeições ainda por averiguar convenientemente, para
que a verdade histórica seja reposta com justiça - foi expulso quatro anos depois, considerando-o,
os seus superiores, contumaz e incorrigível. Dispensado dos votos monásticos,
torna-se um pregador notável para o seu tempo. Membro da Nova Arcádia, inimigo
da Revolução Francesa (1789), portanto dos jacobinos, integrou mais tarde a
Arcádia de Roma adoptando o pseudónimo de Elmiro Tangideu. Escreveu bastante,
sobrepondo-se, na sua vasta obra, os textos políticos, defensores do regime
absolutista contra os liberais, e a poesia épica, no “género” da dos Lusíadas.
Bocage e Almeida Garrett foram alvo da sua natureza polémica e permanentemente
descontente.
O historiador e político Oliveira Martins (1845-1894), na sua obra
“Perfis”, de 1886 (editada postumamente em 1930), teceu algumas considerações importantes sobre
a vida e a obra do incompreendido “foliculário, […] fundador entre nós do
jornalismo político, com o Desengano, com a Tripa Virada e com a Besta
Esfolada, de que chegavam a tirar-se quatro mil exemplares! […] Os tempos
tormentosos da passagem dos séculos XVIII para o XIX, com o esboroar de todas
as coisas, desequilibraram o pensamento e o carácter desse homem poderoso, cuja
força se perdeu num dilúvio de vulgaridades, numa indigesta montanha de
folhetos, de jornais, de sermões, de cartas, de poemas e de versalhada,
medíocre, mas espantosa, pela quantidade – um Himalaia, de calhaus rolados! […]
Elmiro, com a batina desabotoada, as ventas largas cheias de rapé, abordoado a
uma bengala, membrudo, violento, ossudo, desbragado, dava murros no balcão
gorduroso dos Bertrands, ao Chiado, enchendo Lisboa com o estrépito das suas
polémicas e com a fama da sua vida airada.
Andava amancebado com uma freira de Odivelas; passava as noites em
arruaças e bebedeiras. Acusavam-no de ter furtado livros da livraria dos
Paulistas, o que provavelmente era calúnia.
Fabricava poemas: O Oriente, o Gama, A Meditação, Newton, A Natureza,
para não falar nos Burros, traduzindo numa linguagem friamente convencional,
sem génio, sem colorido, as sensaborias banais do racionalismo naturalista do
tempo. Fazia comédias, pregava sermões. Ensaiava o drama burguês moderno,
inventado por Diderot, com a Clotilde e o Vício sem Máscara, e alinhavava
dissertações filosóficas. A sua veia porém, a sua vocação, era a polémica.
Inventou o jornal, nacionalizou o panfleto. Foi o mestre de S. Boaventura,
autor do Mastigóforo, e de Alvito Buela, o autor do Cacete.”
Oliveira Martins finaliza o perfil de José Agostinho de Macedo defendendo
a razão de ser do seu carácter tão singular do seguinte modo: ” apesar da sua
banalidade, da sua monstruosidade cínica, apesar de tudo, foi Alguém. O povo
amou-o, sentiu pelos seus nervos, falou pela sua boca. Porquê? Em primeiro
lugar, porque o povo português, enervado por três séculos de decomposição,
estava retratado na figura do padre. A força que ainda tinha esvaía-se toda em
pedir arrocho, e em arrastar os cacetes apostólicos pelas portarias dos
conventos e pelas vielas imundas das marafonas, cambaleando ébrio de cólera, e
também de vinho frequentemente. Mas, em segundo lugar, a razão é outra. Dois
homens podem entender-se para praticar uma traficância; muitos, é difícil –
todos, nunca. Um povo pode ser cínico, mas não pode ser patife. Há sentimentos
exclusivamente individuais, e a patifaria é um desses. Se um povo pratica
acções criminosas, é porque perdeu a consciência do que seja crime. O povo é
sempre sincero.
A sinceridade, eis aí o segredo de José Agostinho; a franqueza foi a sua
força; o desinteresse, a origem do seu prestígio. O cinismo desbragado, isto é,
a sinceridade e a franqueza levadas até à impudência, com aquele desaforo dos
que, não tendo vergonha têm o mundo por si, foram a nota dominante e a
faculdade íntima do polemista que se achou desse modo num perfeito acordo com o
povo. Plebeu, sem perfídias de civilizado, rústico, sem ambages de político,
foi um arrieiro das letras, é verdade, mas não foi um chatim.
Cobiçava a fama, cobiçava a popularidade mais vulgar; mas não cobiçava o
dinheiro, ídolo exclusivo dos dias de hoje [Oliveira Martins dizia isto no
final do século XIX e, hoje, ultrapassado o século XX, o dinheiro não continua
a ser o mote da canção de embalar dos políticos e dos oportunistas?] . Viveu
sempre quase mendigo. As letras e o púlpito davam-lhe apenas para não morrer de
fome. Era, a valer, o tipo do demagogo antigo ao lado de D. Miguel que
reproduzia a imagem dos velhos tiranos lacedemónios do Peloponeso ou da
Sicília. Além disso, levava sobre os dias de hoje e sobre os nossos
foliculários outra vantagem: as suas verrinas não eram postiças, convencionais.
Havia ódios, o que não deixa de ser um bem quando há antagonismos
fundamentados. A imprensa não era ainda uma comédia representada para ilusão da
galeria. Quando se jogavam injúrias, arriscavam-se facadas e tiros. Era sério. Finalmente,
havia uma outra vantagem, se comparamos a Besta esfolada às Tripas viradas dos
dias de hoje: é que as injúrias inflamantes, os insultos obscenos, as verrinas
descompostas, dirigiam-se a um partido odiado que, de resto, pagava na mesma
moeda, em vez de se dirigirem como hoje, que tudo são questões de pessoas, a
fulano ou sicrano, portadores, quando muito, de uma individualidade incómoda ou
de um interesse cúpido.
Estudando comparadamente o jornalismo português com meio século de
intervalo, vemos que a tradição de José Agostinho se mantém nuns pontos e se
oblitera em outros.
Oxalá seja para melhor!”
Nas suas “Cartas filosóficas a Attico” (edição da Impressão Regia de
Lisboa, de 1815), Macedo desenvolve, entre muitos outros temas de carácter
militar, político, social, religioso, cultural e económico, o tema do
provincianismo segundo a sua vertente do patriotismo. Tudo para impressionar
uma das suas novas paixões, uma freira Trina… a dado passo, até julgamos que se
refere a uma religiosa portuguesa, provinciana, também de Beja, que tem dado
que falar. Ilusões do gosto e do nosso ofício, sem dúvida.
Leonel Borrela
Publicado no jornal Diário do Alentejo em 17 de Agosto de 2007.
Como vimos, José Agostinho de Macedo (11/09/1761 - 02/10/1831), natural
de Beja, foi o grande polígrafo dos começos conturbados do século XIX
português. Nas suas “Cartas filosóficas a Attico” (edição da Impressão Regia de
Lisboa, de 1815), desenvolveu, entre muitos outros temas de carácter militar,
político, social, religioso, cultural e económico, o tema do provincianismo
segundo a sua vertente do patriotismo e enalteceu também, a seu modo, as virtudes
intelectuais da mulher.
As suas vinte e sete Cartas foram escritas para impressionar uma das suas
novas paixões, uma freira Trina (ver página inicial da dedicatória), D. Joanna
Thomazia de Brito Lobo de S. Paio, natural de Moura, “sua Pátria”, a qual não
deve ser privada de “uma gloria que é sua, que é nossa, que é do Reino, e a sua
ilustre Religião[1] de mais um timbre”, […]
que “sabe unir muito bem a virtude e a ciência; e quando é constante esta
união, e esta harmonia, não deve ter clausura o seu nome, nem devem ficar na
sombra do Claustro seus conhecimentos, é justo que veja o mundo ilustrado a
razão com que os admiro, e até a razão com que os invejo. O sentimento delicado
é próprio do seu sexo, é regra dos seus juízos, e poucas vezes se engana, e
nestas ocasiões sentimentais sobre as obras de puro engenho, não leio uma só
carta de V. S. que a não compare, para a preferir, à mais bem lançada de
Sévigné.” (1815, pp inumeradas da dedicatória).
A Carta XVI, pp.213 a 230, discorre sobre várias noções de patriotismo e
a noção de grandeza daqueles que vivem nas grandes cidades. Macedo valoriza a
História como repositório de lições que se devem consultar para melhor
orientação dos homens nos seus actos políticos, comerciais e culturais. A dado
passo, referindo o vanglorioso e excessivo patriotismo que se vivia na Atenas
clássica ao ponto de uma “revendona” da praça não reconhecer os literatos
estrangeiros, Macedo narra o seguinte: “Li, não sei em que livro, que
celebrando-se diante de uma matronaça de Paris os olhos formosos, serenos, e
alegres de uma rapariga que tinha nascido longe de Paris, pronunciou gravemente
que ela conhecia aquela rapariga, e que ela confessava que com efeito tinha
bons olhos, mas que eram bons quanto os pode ter bons uma pessoa de Província: não
cito o nome do livro, porque me não lembra, mas posso, meu Ático,
certificar-vos que com efeito li isto com estes meus dois olhos, que não
tiveram a ventura de nascer em Lisboa, mas em Beja, e por isso ficam sendo
olhos Provincianos. […] o que me impacienta é o célebre La Bruyere , que, em seus
caracteres feitos para emendar os homens, censura as pessoas que nasceram nas
Províncias, porque não têm polidez, e luzente verniz das que nasceram em Paris.
[…] Contudo, as grandes Cidades terão sempre maiores vantagens, e prerrogativas
que as pequenas, e quem nasce no meio de uma populosa Corte acha de ordinário
com mais facilidades preparados os meios para uma boa educação, e para o estudo
das boas artes e disciplinas. Mas porque vós nascestes em Lisboa, e eu em Beja,
tendes acaso razão de vos entonar, e ensoberbecer pela magnificência publica?
Deveis acaso julgar-vos grande porque Lisboa tem grandes praças, grandes ruas,
grandes Templos, e grandes Palácios? E eu, porque nasci em Beja, devo acaso
reputar-me um mesquinho mal olhado da ventura, porque permanecendo e vivendo
naquele sombrio município Romano, não acordo alvoraçado depois da meia noite
com o estrepido das carruagens que saem do Teatro, ou porque não desperto
sobressaltado de madrugada com o motim dos pregões, e burburinho da gente? E
serão para mim sem sabor os passeios por aqueles extensos e despidos campos,
porque uma onda de povo não me leva em si, e outra me traz contra minha
vontade!”.
Macedo é deveras um atento observador do seu tempo. Julgava que a Pátria
se deveria rejubilar por ser o berço de profundos e exemplares entendimentos,
uma pátria das ciências, das artes úteis e liberais, e não uma pátria que se
gabasse por ter alfaiates caprichosos, cozinheiros exóticos e cabeleireiros mais
elegantes. Também na província era possível encontrar quem tivesse valor, quem
fosse Alguém (como diria mais tarde Oliveira Martins), quem, no fundo, sabia
muito mais do que contava, embora dissesse que já se não lembrava do nome do
livro que lera, livro que era, afinal, o livro consistente, o do verdadeiro
saber, ao qual se resumiam todos os outros: o conhecimento das leituras e das
experiências de uma vida muito atribulada.
Em 1815, quando as “Cartas a Ático” foram editadas, já se conhecia, pelo
menos em Paris, o conteúdo da nota do abade Boissonade, erudito francês, que
trouxe para a ribalta, em 1810, o nome de Mariana Alcoforado como a autora das
“Lettres Portugaises”. As Cartas de Macedo aludem a várias celebridades
femininas como sejam as Mmes. de Stael e de Sévigné, ambas referenciando nas
suas obras literárias as “Lettres Portugaises”, pelo que é muito provável que o
autor tenha conhecido o tema e, até, reconhecido a importância de Mariana,
bejense como ele. Aqueles olhos
bejenses, provincianos, simples e verdadeiros, aliados incondicionais da
paixão, bem poderiam ser os dela…
Leonel Borrela
Publicado no jornal Diário do Alentejo em 24 de Agosto de 2007.
[1] Este termo, Religião,
escrito assim, ainda em 1815, para qualificar a devoção católica da religiosa,
é muito importante para a análise da autenticidade das Cartas Portuguesas
atribuídas à freira bejense Mariana Alcoforado, pois têm sido vários os autores/opositores
da tese Alcoforadista que o têm apresentado como um termo quase impossível de
utilizar, naquele contexto, por uma religiosa portuguesa no século XVII.
Nota: Adquiri hoje e conclui a leitura da obra de António Mega Ferreira intitulada "MACEDO - Uma biografia da infâmia", recentemente editada pela Porto Editora, Outubro 2011. É um belíssimo trabalho de pesquisa sobre a vida e a obra diversificada do grande polemista bejense e do contexto histórico que o envolve. As imprecisões sobre o aspecto, a história e a localização da casa onde nasceu Macedo, que era uma simples casa de um só piso e não de dois (resultado das obras realizadas, cerca de 1848, por Sousa Porto para a primeira imprensa lito-tipográfica de Beja), portanto, muito menos "nobre" do que o autor julga - na qual não está provado que tenha vivido Jacinto Freire de Andrade, nem vai dar à praça do município bejense - em nada interferem na coerência da obra que examina em pormenor a provável origem alfacinha do truculento padre, a sua relação com os seus contemporâneos, amigos e inimigos, o seu lado mais violento e detestável na política, mas também a sua sagacidade na previsão, por exemplo, das consequências políticas da fuga real para o Brasil, aquando das invasões francesas, assim como a sua ambição em querer ser o melhor, nomeadamente na poesia, a turbulência dos seus amores, etc..
Mega Ferreira considera, a p.159 da sua obra, que as "Cartas Filosóficas a Attico" - das quais destacamos na nosso estudo, acima apresentado, alguns excertos da carta XVI - "são do melhor, mais razoável e contidamente argumentativo que saiu da pena de José Agostinho" e que (p.151) se lhe dessem a escolher uma mão cheia de escritos do padre que quisesse levar para uma ilha deserta, desprezaria quase tudo, mas levaria com ele, embrulhados em duas ou três das melhores peças da sua correspondência, e na IV e VII das suas Cartas Filosóficas a Attico (que tratam do belo e do sublime, respectivamente), os quatro volumes in-octavo do Motim Literário, que reúnem fascículos dos Solilóquios dados à estampa em 1811, em entregas semanais. Em suma, levaria a sua autobiografia como já a entendera Teofilo Braga, o retrato do "possante polígrafo e o Homem, de letra e de corpo inteiro."
LB
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Acerca de mim
- Calandrónio
- Calandrónio é um nome que vem epigrafado numa lápide funerária visigótica exposta no Núcleo Visigótico do Museu Regional de Beja. Num texto comovente Calandrónio chora a perda da sua sobrinha Maura, de olhos muito belos e formosa de feições, que mal fizera quinze anos. Por ser um documento pacense extraordinário,do século VII, repleto de sensibilidade, adoptei-lhe a memória. Leonel Borrela